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terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Relatos da I Guerra Mundial

  Desenho de pessoas

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Disponível em:< https://actualitte.com/article/16343/reseaux-sociaux/armistice-du-11-novembre-raconter-la-guerre-aux-enfants-en-4-livres > Acesso em 27 fev. 2024. 

    A I Guerra Mundial ou Grande Guerra, foi um conflito sem precedentes não somente pelos 10 milhões de mortos e milhões de feridos, mas pelas dimensões que assumiu na vida daqueles que foram obrigados a passar por ela e nas feridas profundas que deixou sem cicatrizar.



   Há alguns anos li o livro Vozes Roubadas, diários de guerra, organizado por Zlata Filipovic e Melanie Challenger. Como não me emocionar com os relatos da jovem Piete Kuhr, sua ingenuidade e olhar singular sobre os acontecimentos que castigavam sua Alemanha? 



Um poema e as condições sanitárias na Trincheira


Dia inteiro e a noite estrelada; 
Por eles não posso descansar ou dormir,
Nem me esconder ou bater em retirada.
Então em minha agonia eu os massacrei
Até de vermelho minhas mãos banhar
Em vão – quanto mais rápido eu matava
Mais cruéis ainda eles conseguiam voltar.
Eu matei e matei, com loucura assassina,
Matei até esgotar toda a minha garra,
E eles se levantavam para me torturar
Porque diabos só morrem fazendo farra.
Antes eu achava que o demônio se escondia
No sorriso das damas e no vinho gostoso
[...] agora o chamo de piolho asqueroso.


Vale a pena acessar: 



📖  Seguem outros relatos: 
     

📚 Relato 1:  6 de agosto de 1914: 

“Queria tanto ir com eles ! Não quero ficar para trás e ser criança! Tenho tanta pena dos soldados e dos cavalos” 

      Hoje é dia 1˚ de agosto de 1914. Faz muito calor. Faz muito calor. Começaram a colher o centeio no dia 25 de julho, já está quase branco. Quando passei por um campo esta noite, colhi três ramos e fixei-os sobre a minha cama com uma tachinha. 
      A partir de hoje a Alemanha está em guerra. Minha mãe me aconselhou a escrever um diário sobre a guerra; ela acha que poderá me interessar quando eu for mais velha  [...]

14 de agosto de 1914

Finalmente! As potências envolvidas na guerra europeia fizeram até o momento onze declarações de guerra na seguinte ordem, precisamente:

1.      Áustria-Hungria v. Sérvia

2.      Alemanha v. Rússia

3.      Alemanha v. França

4.      Inglaterra v. Alemanha

5.      Bélgica v. Alemanha

6.      Áustria-Hungria v. Rússia

7.      Montenegro v. Áustria-Hungria

8.      Sérvia v. Alemanha

9.      França v. Áustria-Hungria

10.  Montenegro v. Alemanha

11.  Inglaterra v. Áustria-Hungria”

Há boatos nas ruas de que estão sendo feitos preparativos para grandes batalhas tanto na França como na Rússia. Na França estamos reunindo nossas tropas perto da fortaleza de Belfort. Na Rússia estamos rumo a São Petersburgo. O governo Russo precisa tentar ganhar os poloneses para a sua causa. Colunas de ciclistas alemães e austríacos estão agora pregando avisos nas paredes das cidades polonesas dizendo, no idioma deles: “Poloneses, rebelem-se contra o governo e submetam-se ao ordeiro regime alemão”.

Agora há barricadas nas pontes das nossas estações de trem. Por toda parte há sentinelas. Nas pontes, há cartazes que dizem “Dirija devagar!”. Todo motorista é interrogado e todo veículo, revistado. Ninguém que esteja atravessando uma ponte pode demorar-se sobre ela. Trens militares passam sob as pontes. Subitamente tem-se a sensação de que o inimigo está bem próximo.

As pessoas estão começando a ficar tensas. Soubemos de algumas famílias que deixaram a cidade. [...]. Novos refugiados chegaram da Prússia Oriental. Desta vez eu os vi com meus próprios olhos, mães, crianças, velhas e velhos. Alguns bem-vestidos, outros, mal. Todos trazem trouxas e malas, roupa de cama, casacos e mantos, tudo amarrado junto. O posto da Cruz Vermelha na estação cuida dos refugiados.

Uma mulher com crianças barulhentas ficava gritando “Para onde podemos ir? Para onde ir?”. Desejei a ela boa sorte e disse: “Não se preocupe, o imperador cuidará de todos nós!”. “Pobre menina”, disse a mulher (pronunciando-o de uma maneira esquisita), “uma criança como você não faz ideia de como é, não?” E as lágrimas correram por todo o seu rosto rechonchudo e vermelho.

Piete Kuhr

Bibliografia: FILIPOVIC, Zlata; Challenger, Melanie (org). Vozes roubadas: diários de guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


📚 Relato 2: Madrugada de 22 de abril de 1915.     
        Comandada pelos britânicos, a frota da Tríplice Entente prepara-se para iniciar a operação anfíbia que almeja a tomada do estreito de Dardanelos, passo primeiro da conquista da Turquia. Os botes que levam os soldados às praias estão partindo. Eric Bush, guarda-marinha [...] descreve a cena.



     "Usamos almofadados para evitar qualquer barulho, os remos são baixados cuidadosamente nos botes. Alguns soldados ajustam o equipamento, outros apertam a fivela do capacete ou ainda azeitam seus rifles. Porém... As cornetas em terra firme dão o alarme. Fomos avistados! As luzes se acendem. O inimigo abre fogo. Começa a chuva de balas. Está escuro o suficiente para vermos os rifles e metralhadoras e claro o suficiente para reconhecermos os otomanos se movimentando em terra.

    Não há cobertura para nossos soldados. Diversos são atingidos antes de chegarmos ao continente. Vejo alguns deles tombarem nos botes lotados, tão logo levantam para sair, alvejados pelos projéteis inimigos. Graças a Deus, restam apenas mais algumas jardas. Assim que os barcos atracam, eles pulam. Em alguns casos, a terra firme está mais longe do que imaginam, e os soldados precisam arrastar-se para a margem com água na cintura. Os menos preparados afundam com seu equipamento pesado. Mas a maioria chega em segurança, joga-se na areia e, de trás de suas mochilas, começa a atirar.

       [...]

       A cerca de cem jardas da praia, o inimigo abriu fogo, e o chumbo veio quente, espirrando água por todos os lados. Eu não vi ninguém ser atingido nos botes – mas muitos foram, como meus contramestre-sargento e major-sargento, que estavam sentados a meu lado. Estávamos tão apertados, próximos uns aos outros, que não era possível se mover. Eles ficaram ali, sentados, mortos.

   Quando o senti o barco tocar em terra, corri em direção ao arame farpado na praia, locomovendo-me pela água que devia estar ainda a um metro de altura. Descobri que apenas Munsell e outros dois homens haviam me seguido. [...]. O mar estava absolutamente vermelho e era possível ouvir os gemidos em meio ao ruído da fuzilaria. Havia alguns poucos dos nossos atirando de volta. Eu os chamei para avançar. O soldado atrás de mim, porém, gritou: "Fui atingido no peito." Percebi então que todos haviam sido atingidos".

📚 Relato 3:  Soldado Alfred Bromfield 2º Batalhão, Regimento de Lancashire - Segunda Batalha de Ypres 

O dia 22 de abril é um dia de que jamais me esquecerei. Eu estava de pé em uma trincheira preparando algo para o café da manhã.  [...], um dos nossos colegas no posto de observação gritou:
— Veja aquelas bombas de lidite explodindo nas trincheiras dos Chucrutes. Movidos pela curiosidade, já que bombas desse tipo não eram muito usadas, saímos rapidamente da trincheira para vê-las explodindo no terreno adiante. Vimos uma dúzia de tufos de fumaça amarela subindo daquilo que achávamos serem lidite [...]. 
No entanto, cinco ou seis segundos depois o observador voltou a gritar:

— Não é lidite, é gás.

Voltamos a sair às pressas da trincheira. Nisso, um oficial veio correndo e ordenou:

— Abram fogo! Rápido!

[...] Assim, abrimos fogo o mais rapidamente possível. Foi um momento de verdadeira loucura. Atirando a torto e a direito contra as nuvens de gás, não sabíamos se estávamos atingindo alguém ou atirando a esmo, com o gás avançando.


[...]. Paramos de atirar [...]. A essa altura, o gás havia nos alcançado e não tínhamos proteção nenhuma, a não ser nossa própria criatividade — não havia coisas como máscaras de gás ou protetores naqueles dias. Fomos avisados de que a única forma de nos proteger era urinar no lenço de mão ou no gorro e cobrir a boca com eles. Então, passamos a fazer isso o tempo suficiente para tomarmos bastante fôlego e voltávamos a atirar. Isso prosseguiu enquanto as nuvens de gás avançavam sobre a trincheira.

Pessoalmente, essas medidas não achava que serviam para nos proteger. Portanto, fui até uma das latrinas da trincheira, que era apenas balde enfiado em um buraco, e meti a cabeça nele. Fiquei assim até não poder mais prender a respiração. Então me levantei, respirei fundo e voltei.

Quando voltei para a trincheira principal porque os colegas tinham parado de atirar e vi que o gás havia passado. Pudemos vê-lo seguindo para a retaguarda. Em todo caso, detivemos os Chucrutes. Eles devem ter tentado avançar, pois, quando observamos o campo aberto, vimos um grande número deles caídos, muitos se contorcendo de dor, e outro tanto de mortos, mas acho que a maior destruição foi causada pela metralhadora de nosso colega Jackie Lynn. Ele estava à direita de nossas linhas, em uma posição da qual podia atingir com fogo desenfreado toda a dianteira das trincheiras alemãs, e ele usou a metralhadora o tempo todo. Estava sozinho, porque seus dois ajudantes tinham morrido pelo efeito do gás. Portanto, estava operando a metralhadora sozinho, e tivemos de tirá-lo de lá à força — aliás, arrancá-lo mesmo. Quando o levaram para a retaguarda, ele resistiu por três dias e morreu pela exposição que tivera ao gás venenoso. Mas ganhou a Cruz da Vitória pelo feito. 


'Gassed', de John Singer Sargent, retrata as consequências de um ataque com gás mostarda na Frente Ocidental em agosto de 1918. As cenas lembram a descrição de Jack Dorgan dos homens gaseados em Ypres em 1915. © IWM (Art.IWM ART 1460)


ARTHUR, Max. Vozes esquecidas da Primeira Guerra Mundial: uma nova história contada por homens que vivenciaram o primeiro grande conflito do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Bertrand Brasil, 2014. p 108-110.


📚 Relato 4:  diário do soldado dinamarquês-alemão Jakob Moos detalhando a sua experiência durante um ataque de gás a 16 de março de 1916.


Foram os alemães que tiveram a honra questionável de serem os primeiros a implantar estes meios de combate, mas do lado inimigo não demorou muito para eles usarem os mesmos métodos. Por isso fomos forçados a encontrar imediatamente proteção contra o gás venenoso. Deram-nos as famosas máscaras de gás, e quando funcionavam, estavam bem.


Soldados alemães usando máscaras de gás M1915 posando para uma fotografia numa trincheira, 1915.

Mas os ataques de gás não foram incomuns. Uma vez - isso foi na Primavera de 1916 - tivemos ataques de gás três noites seguidas. Os dois primeiros foram suportáveis, pois os ventos estavam muito fortes e o gás rapidamente soprou; mas a terceira noite foi pior.

Foi por volta da meia-noite. Tínhamos recebido a ordem de guardar as nossas espingardas desde que íamos trabalhar na trincheira. A ordem foi seguida, mas vários também guardaram suas máscaras de gás para permitir um movimento mais livre durante o trabalho.

O meu amigo e eu concordámos em manter as máscaras de gás connosco, uma vez que tivemos ataques de gás nas duas noites anteriores, e nunca se sabia.

O trabalho começou. A trincheira teve que ser cavada mais fundo. Estávamos trabalhando há apenas alguns minutos quando a artilharia inglesa de repente nos cobriu com projéteis de todos os calibres.

Pouco depois, o grito foi soado: "Máscaras de gás, coloquem as máscaras!".

E agora a catástrofe nos atingiu. Eu e o meu amigo podíamos colocar a nossa imediatamente, mas a grande maioria tinha as suas máscaras colocadas nos parapeitos das trincheiras e tiveram que ir buscá-los durante a terrível chuva de balas.

Devido à escuridão eles não as pegaram suas. Assim que sentiram que não cabiam, jogaram fora e tentavam outra. Claro, muitos ficaram sem uma.

No meio da chuva do terrível ataque, as pessoas brigavam entre si pelas máscaras, pisavam umas nas outras, gritavam maldições, muitos correram como loucos, tudo era caótico, e aqui e ali os gemidos dos feridos foram ouvidos.

Estilhaços assobiados à nossa volta, terra e rochas desmoronaram-se sobre nós. Apenas às 3 da manhã o bombardeio cessou, e nós previmos que a infantaria inglesa iria atacar.

Tínhamos perdido 60 homens neste ataque de gás. Foi estranho ver o efeito que o gás teve na flora. No dia seguinte, as folhas nos arbustos e árvores e ervas estavam completamente pretas.

Disponível em: <https://www.instagram.com/p/C4k-Pm6tv50/> Acesso em 16 mar. 2024
📚 Relato 5: Henri Barbusse, Frente Ocidental, 1916.
Antes do assalto
Estamos prontos. Os homens fazem fila, ainda em silêncio, com os cobertores, a tira do capacete no queixo, apoiados nos rifles. Olho para seus rostos tensos e pálidos. Eles não são soldados: são homens. Eles não são aventureiros, guerreiros, feitos para a carnificina humana. São lavradores e trabalhadores que podem ser reconhecidos pelos seus uniformes. Eles são civis desenraizados. Eles estão prontos. Eles estão esperando o sinal de morte e assassinato.
Agora!
Os sons estridentes dos fragmentos que passam machucam seus ouvidos, atingem sua nuca, passam por suas têmporas e você não consegue conter o choro ao experimentá-los. Nossos corações estão disparados, há cheiro de enxofre por todo lado. Os sopros da morte nos empurram, nos levantam, nos balançam. Marchamos, mas não sabemos para onde vamos. [...] Você tem que passar por esse turbilhão de chamas e por essas horríveis nuvens verticais. Nós passamos. Passamos ao acaso: aqui e ali vi formas rodopiando, subindo e descendo, iluminadas por um reflexo repentino do além...
À frente! Agora estamos quase correndo. Vemos alguns que caem repentinamente com a cabeça para a frente, outros que falham humildemente, como se estivessem sentados no chão. Fazemos desvios bruscos para evitar os mortos deitados, sábios e rígidos, ou arqueados...
 Henri Barbusse, Fogo, 1916

Capa do romance "Le Feu" Fogo (1916) de Henri Barbusse, publicado pelo L'Oeuvre, o jornal de Gustave Tery durante a Primeira Guerra Mundial. A litografia retrata soldados franceses na linha de frente, imersos na realidade brutal de guerra. A poderosa narrativa de Barbusse fornece um relato cru e sem filtros dos horrores vividos por estes bravos soldados. Através de suas descrições vívidas e narrativa comovente, ele expõe o custo físico e psicológico que a guerra exige dos indivíduos e da sociedade como um todo. A própria imagem evoca um sentimento de melancolia e camaradagem entre esses soldados que encontram consolo uns nos outros em meio ao caos. Suas expressões cansadas refletem tanto o esgotamento da batalha quanto sua determinação inabalável em proteger sua terra natal. Publicado numa época em que a censura prevalecia, "Le Feu" desafiou as normas sociais ao lançar luz sobre as duras realidades enfrentadas pelos que lutam na linha da frente. Tornou-se uma obra literária influente que não apenas expôs a devastação da guerra, mas também defendeu a paz.
Relato 6: O suboficial Johnson, da divisão naval britânica, chegou com segurança à praia e posicionou-se em um pequeno buraco próximo à trincheira.
    Por quase uma hora, as enormes armas não pararam de cuspir projéteis, enquanto nos afundávamos nos buracos das trincheiras. Era bom quando dois caras podiam ficar juntos em um desses buracos – significava companhia. As pernas e os pés ficam para fora, mas as costas e a cabeça estão protegidas por talvez cinquenta, sessenta centímetros de terra, que qualquer cápsula ordinária pode destruir em um centésimo de segundo. É melhor nem pensar nisso. Ficamos olhando um para a cara do outro. É melhor esperar. Tudo que você vê é o lado oposto da trincheira de areia, que você encara com um olhar vago e distante. Os projéteis gritam alto e com frequência, e você ouve os rangidos, os berros e as explosões misturados. O chão abaixo e em seu entorno está tremendo e chacoalhando.

    A fumaça entra no buraco e eu e meu companheiro começamos a tossir. Metade da areia que estava na superfície nos protegendo agora está em nosso pescoço e dentro de nossa calça. Nos perguntamos se um dia esse bombardeio irá parar... Mas de repente, os barulhos cessam e o ar fica claro. Percebemos que, ao menos por enquanto, o bombardeio parou. Depois de esperarmos mais alguns minutos, para ter certeza, saímos do buraco, em direção às trincheiras. Olhamos por sobre ela e tudo que vemos é um horizonte sem sinal de vida.




📚 Relato 7: 1918 - Cabo Clifford Lane 1˚ Batalhão de Infantaria, Regimento de Hertfordshire

Desfile de reparação na cidade de Nova York, passando pela Biblioteca Pública de Nova York, assistido por grandes multidões, 1916. © IWM (Q 110335)


    Acho que, se os americanos não tivessem chegado, teríamos atingido um impasse — pois os alemães já estavam fartos da guerra também — e acabaríamos estabelecendo um acordo de paz. O fato é que, de repente, apareceram todos esses americanos, centenas de milhares de jovens soldados fortes, saudáveis, bem equipados, cuja força não havia sofrido o mínimo desgaste. Estavam prontos para lutar— como nós em 1914. Portanto, é fácil imaginar o que os alemães pensaram a respeito disso; eles sabiam o que estava para acontecer. Foi por isso que ficaram tão ansiosos para capturar Paris antes que os americanos se estabelecessem lá. Tenho certeza de que estes influenciaram muito o resultado  da guerra.

    Depois da revolução bolchevique, sabíamos que os russos acabariam libertando centenas de milhares de soldados alemães. Mas isso não nos preocupava. A vida era tão precária que só podíamos pensar em viver um dia após o outro. Nunca pensávamos: "Daqui a alguns meses eles virão atrás de nós", pois não esperávamos viver tanto. A estratégia geral, quando havia tal coisa, nos parecia eficaz, embora não entendêssemos nada disso. Confiávamos em nossos generais até certo ponto, mas não sabíamos realmente o que estava acontecendo.

ARTHUR, Max. Vozes esquecidas da Primeira Guerra Mundial: uma nova história contada por homens que vivenciaram o primeiro grande conflito do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Bertrand Brasil, 2014. p 359. 

📚 Relato 8: 29 de novembro de 1918

Vovó resmungou um pouco quando sobre que pretendíamos ir até o cemitério dos prisioneiros e disse que acabaríamos molhando os pés na neve. Coloquei minhas pantufas cuidadosamente atrás do fogão quente e olhei dentro do forno, para me certificar de que estava tudo bem. Lá estava a lata azul de café; estávamos bem preparadas.

Não estava mais nevando, mas tudo estava branco, e o ar, enevoado e cinza, um típico penúltimo dia de novembro. Gretel caminhava com dificuldade ao meu lado; estava bonita, no entanto, com o seu antigo casaco fino. Olhei de soslaio para ela e declarei: “Suas bochechas estão azuis de frio”. Friccionei minhas luvas de lã contra o rosto dela até que ficasse quente e rosado novamente.

O caminho até o cemitério dos prisioneiros nunca nos pareceu tão longo; não tinha fim. Nossos sapatos logo se encheram de neve. Não podia mais sentir os dedos dos pés, tamanho o frio. Eu havia pendurado a grinalda sobre o ombro esquerdo; ela me alfinetava o rosto quando eu tropeçava. Mal conseguíamos avançar no caminho, pois afundávamos na neve até os joelhos. Embora tivéssemos saído antes das três horas, já estava começando a escurecer. O sol não havia aparecido durante todo o dia. Gretel disse que muitos dos seus alunos na escola do conselho estavam doentes, com gripe; igualmente, dois professores estavam afastados. A escola será fechada po medo de infecção. Gretel disse que eu não podia de maneira alguma pegar a gripe, porque ficaria tão magra que não seria capaz de resistir à doença. Eu ri e respondi que mesmo assim resistiria com a minha energia; além do que, eu não tinha tempo de ficar doente, pelo bem dos pobres pequeninos no lar de menores.

“E pelo meu bem, não se esqueça”, disse Gretel, caindo de corpo todo na neve. Gargalhamos porque ao menos trinta corvos ficaram tão assustados pela queda de Gretel que fugiram, grasnando e reclamando, sobrevoando o campo nevado. “Será que já estamos chegando?”, perguntou Gretel. “Estamos andando há tanto tempo. Sabe encontrar a trilha certa em meio à neve?”

Eu apontei para diante; lá estavam os primeiros sinais do arame farpado que rodeava os túmulos. As sepulturas baixas eram difíceis de reconhecer em meio à massa branca; apenas as cruzes negras de madeira eram distinguíveis. E as árvores pareciam de repente muito menores porque a parte inferior dos seus troncos estava coberta pela neve; tudo estava diferente e esquisito. Quando chegamos à cerca, ficamos impressionadas. Tantas cruzes! Fazia tempo que não íamos até lá; e agora o cemitério dos prisioneiros havia se tornado subitamente tão grande – enorme!

“Veja”, disse Gretel, “eles jazem ali tão imóveis!”

Do que teriam morrido todos eles? Mas é verdade que casos de tifo e influenza estavam proliferando; muitos casos de disenteria também, e quem sabe alguns teriam morrido de saudade de casa.

“Ou de fome”, sussurrou Gretel.

“Ou de fome!”, concordei, entristecida.

“E agora?” Gretel olhou para o denso arame farpado...

Então trepei por sobre o portão, apesar do arame farpado. Enquanto fazia isso, esfolei as pernas, mas me ergui rapidamente até o parapeito de madeira e saltei no chão. “Não foi tão feio assim!”, assegurei a Gretel, abrandando involuntariamente a voz, apesar de não haver ninguém por perto. “Dê-me a grinalda. E espere aqui!”

“Vou esperar”, sussurrou ela.

Tantos mortos! Já estava bem escuro, mas eu ainda conseguia ler os nomes dos mortos, não apenas os russos, como no início da guerra, mas também franceses e ingleses. Havia até nomes numa estranha caligrafia, talvez muçulmanos. Como vieram parar no nosso campo de Schneidemühl? Como eu poderia distinguir uma sepultura das outras? Eram todas iguais. Na morte, todos são iguais, por assim dizer.

 Piete Kuhr


Bibliografia: FILIPOVIC, Zlata; Challenger, Melanie (org). Vozes roubadas: diários de guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
📚 Relato 9: 11 de novembro de 1918


    Na noite do dia 10, discutíamos a missão do dia seguinte quando o telefone tocou. Uma voz quase histérica gritou a notícia em meus ouvidos: às 11 horas da manhã seguinte, a guerra acabaria. Nossa missão estava cancelada. Para nós, a guerra acabou naquele momento. Desliguei o telefone e olhei para meus pilotos. Todos perceberam a importância daquele telefonema. Silêncio total no recinto.
    “A guerra acabou!”, gritei. Todos ficamos loucos. Berrando como malucos, corremos para pegar qualquer arma ou sinalizador para atirar para o alto! /…/
    Olhei para meu relógio. Um minuto para as 11 horas. Trinta segundos. E então 11 horas, a décima-primeira hora do décimo-primeiro dia do décimo-primeiro mês. Eu era a única platéia do maior espetáculo já apresentado na Terra. De ambos os lados da terra de ninguém, as trincheiras entraram em erupção. Homens com uniformes marrons irromperam das trincheiras americanas, uniformes cinza-esverdeados saíam das alemãs. Do meu assento de observador, acima, vi atirarem seus capacetes para o ar, abandonarem suas armas e acenarem para o outro lado. Então, de um lado a outro do front, os dois grupos de homens começaram a avançar na terra de ninguém. Segundos antes, eles estavam dispostos a atirar um nos outros; agora eles se aproximavam. Inicialmente, de forma hesitante, mas depois com mais rapidez /…/.
    De repente, uniformes cinzas se misturavam aos marrons. Eu pude vê-los abraçando uns a outros, dançando, pulando. Americanos distribuíam cigarros e chocolate. Voei para o setor francês. Lá era tudo ainda mais incrível. Depois de quatro anos de carnificina e ódio, eles estavam não apenas se abraçando, mas também se beijando nas duas bochechas também.
    Bombas, foguetes e sinalizadores subiam aos céus, e dei meia-volta rumo à base.
    A  guerra havia acabado.

Cartas dos soldados

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