No coração do Quartier Latain, sobre os antigos banhos termais romanos de North Lutetia (século I-II), o L'Hôtel des Abbés de Cluny, ou pied-à-terre (alojamento temporário, enquanto estivessem em Paris), data da segunda metade do século XV, sendo concluído em 1498. Trata-se de uma das raras testemunhas da arquitetura medieval em Paris. A sua capela, em particular, é uma obra-prima do estilo gótico.
Confiscado durante a Revolução, L'Hôtel des Abbés foi comprado em 1812 por um livreiro, Alexandre du Sommerard para expor suas coleções da Idade Média e do Renascimento. Após sua morte, o Estado adquiriu o edifício e as obras, inaugurando o Musée Cuny ou Museu Nacional da Idade Média.
Hoje, o Musée Cluny apresenta objetos e arquitetura da Arte da Antiguidade ao Renascimento.
A representação feminina na Idade Média (no acervo do Musée Cluny)
Durante a Alta Idade Média se desenvolve a ideia da santidade feminina que combinava, em circunstâncias excepcionais, o poder temporal e o poder espiritual. A santidade era expressa através de austeridade e rigor e a figura da esposa, mãe amorosa com grande fé.
Dessa forma, nesse contexto, o ciclo de vida feminina era: menina, esposa, mãe, viúva.
As tapeçarias
As tapeçarias eram populares desde o século XIV, e assim permaneceram durante todo o período moderno. Elas eram muito procurados para decorar igrejas, castelos e outros espaços ligados à elite, tornando-os mais acolhedores e menos frios.
Em uma moradia nobre, tanto tapeçarias, vitrais e mesmo os revestimentos do piso, em geral produzidos de barro cozido, eram adornados com motivos de animais e valorizam aspectos da vida de nobres e burgueses.
A Dama e o Unicórnio
Tato, paladar, olfato, audição e visão... Essas seis tapeçarias, tecidas por volta de 1500, representam os cinco sentidos contra um fundo vermelho detalhado. A tapeçaria de parede A Dama e o Unicórnio é considerada uma das grandes obras-primas da arte ocidental.
A Dama e o Unicórnio (Dame è lo Licome), ciclo de tapeçaria de seis peças que representa o brasão da família Le Viste, e é um magnífico exemplo do estilo millefleurs, apresentando um fundo repleto de motivos florais. O ciclo celebra a família de uma forma harmoniosa bela.
Tapeçaria, Lã e seda, Sul da Holanda ou Paris, cerca de 1500
As tapeçarias “millefleurs” são caracterizadas pela abundância de flora, incluindo flores, laranjeiras, pinheiros, azevinhos e carvalhos, e são habitadas por um bestiário pacífico (um macaco, cães, coelhos e uma garça).
Em um cenário natural idílico, o unicórnio é, ora um participante e, ora um espectador. Acompanhado por um leão, eles ostentam o brasão da família Le Viste nas cenas.
A audição
A dama toca um órgão acompanhada pela jovem. O instrumento está sobre um tapete oriental. A jovem usa um vestido azul e uma sobretudo de corte largo, cujo tecido precioso, decorado com motivos de romã, é semelhante ao vestidos de outras tapeçarias. O cabelo da dama está coberto com um véu curto.
O olfato
A dama trança uma coroa de cravos escolhidos da bandeja que lhe foi apresentada pela jovem. Os vestidos levemente levantados das mulheres permitem visualizar as camadas das vestimentas. O cabelo da dama está preso com fileiras de pérolas e pedras preciosas, já a jovem tem fitas nos seus.
Ao fundo, um macaco usa uma rosa no focinho, reforçando assim a alegoria. O leão e o unicórnio são eretos.
O tato
A dama, em pé, segura firmemente a bandeira com a mão direita e não que eu tinha o chifre do unicórnio à esquerda. Esta peça distingue-se por várias particularidades
que não aparecem nas demais. O unicórnio é menor e o leão surpreende com seus olhos grandes e orelhas pontudas.
Entre os animais ao fundo estão dois macacos e três animais selvagens, um lobo, uma pantera e uma chita, carregando um colar.
A dama está com o cabelo desamarrado preso por uma tiara, veste um vestido de veludo azul forrado com arminho, realçado de peças de ourivesaria.
O paladar
A dama pega delicadamente uma guloseima da taça usada pela jovem para alimentar o pássaro que pousou em sua mão enluvada. Na frente dela, um macaco leva uma fruta à boca, enfatizando o significado da imagem. As roupas e adornos são diferenciados e as joias têm motivos florais.
A composição, ampla e harmoniosa, é organizada em torno da pirâmide formada pelo grupo de duas mulheres; atrás, a cerca coberta de rosas cria espaço e isola a cena.
A visão
O unicórnio vê a si mesmo no reflexo do espelho da dama
A dama, sentada, acaricia o unicórnio que coloca as patas dianteiras em seus joelhos e olha no espelho, uma preciosa peça de ourivesaria, onde o perfil do animal que aparece não é dele, no entanto.
Meu único desejo “À mon seul désir”
Em frente a uma tenda, o leão e o unicórnio, carregam o brasão da família e abrem as laterais para que a dama passe e escolha suas jóias decoradas com pérolas e flores - ou pelo contrário, guarde as jóias na caixa?
A composição é novamente piramidal e de grande magnitude, é organizada em torno deste grupo, equilibrada pelo cachorrinho.
A inscrição colocada no topo da tenda não só deu nome à tapeçaria, mas também gerou muitos comentários e hipóteses. Esta sexta peça ilustraria, portanto, uma sexto sentido, mais próximo da alma, que poderia ser o coração, o amor humano e o desejo carnal.
A tapeçaria de A Dama e o Unicórnio parece ilustrar os versos do famoso poeta Charles d'Orléans (1394-1465): “Com um coração leal, contente com a alegria, /Minha amante, meu único desejo, / Mais do que nunca você quer servir, / Onde quer que eu esteja.”
Sem excluir um possível significado no registro do amor cortês, poderia ser uma referência ao livre arbítrio: a mulher com seu cocar decorativo e roupas refinadas, renunciando aos prazeres temporais.
Cotidiano: lazer, elegância e cuidados com o corpo
As tapeçarias millefleurs desta sala oferecem um vislumbre de atividades de lazer da nobreza durante a Idade Média, como leitura, bordado e música, realizada em ambientes domésticos e festivos, mas também durante cerimônias religiosas. As vestimentas eram complementadas com as jóias e cintos sofisticados.
As moradias
Nas moradias, os móveis e demais objetos constituíam um claro indicador de estatus social. Grande parte do mobiliário era transportável, versátil e modular para se adaptar, quer a vida rural e itinerante da nobreza. A arca, ou baú, era uma peça de mobiliário essencial na casas nobres medievais. Ela servia, inclusive, para armazenar itens valiosos com cereais.
Ciclo de tapeçaria na vida senhorial. Paris, início do século XVI. Lã e seda
Cena de amor cortês: um jovem lê versos para a dama que está cortejando enquanto ela se ocupada com seu trabalho de fiação da lã.
Jóas - colares, brincos, pulseiras e cintos.
Este conjunto de quatro tapeçarias millefleur representa as atividades da nobreza do final da Idade Média: passear, tomar banho com música, bordar, ler e fiar. Provavelmente foi tecido antes da compra, para ser apresentado a potenciais compradores que ficarão impressionados com sua decoração bucólica.
Acessórios de beleza medievais, a preocupação com a beleza
Na Idade Média, a nobreza se preocupava com a aparência pessoal e a beleza. Inúmeros objetos e as representações, como as tapeçarias, iluminuras e esculturas, testemunham essa preocupação. Homens e mulheres investiam em adornos e roupas sofisticadas.
Alguns acessórios podiam ser produzidos de materiais simples, enquanto outros, luxuosos, eram produzidos com metais e pedras preciosas.
Pentes, espelhos, broches eram itens de luxo e sofisticados.
Nessa cena, a senhora está sentada e usando um vestido de brocado dourado forrado com pele enquanto trabalha em um bordado com um padrão de mil flores. À direita, a criada, ricamente vestida, traz-lhe um luxuoso espelho.
Na cena a seguir, a dama banha-se em uma banheira, lembrando às cenas de banho romanas, frequentemente adotada no Renascimento.
Cercada por criados, um deles tocando uma toca flauta doce e uma de suas damas toca um alaúde. Uma senhora traz uma caixa de joias, a outra um prato de doces.
Cenas de banho sugerem a importância da higiene e dos cuidados com o corpo. Os ricos banhavam-se em salas de vapor privadas, enquanto a maioria da população, quando banhavam-se usavam as coletivas.
Brinquedos e jogos na Idade Média
A coleção de jogos e brinquedos medievais do Musée de Cluny consiste em jogos de jantar e campos de batalha em miniatura. O simbolismo da batalha também está presente em jogos de mesa como o gamão, herdado da Antiguidade, e o xadrez, que teve origem no Oriente. Tanto os filhos dos príncipes quanto pessoas pobres transpuseram as hierarquias sociais e utilizavam para os jogos de tabuleiro. No final da Idade Média, as cartas de baralho, inventadas na Itália, tornaram-se muito difundidas graças à imprensa.
1 - Soldado, duas espadas e uma adaga. Final do século 14 ao 15, Chumbo e estanho. Paris, Île de la Cité
Acredita-se que as armas em miniatura venham de brinquedos e jogos, mas também podem ser emblemas de peregrino que simbolizam o martírio de um santo, por exemplo, Thomas Becket, que foi assassinado. O cavaleiro em miniatura, datado do século XIV, é um dos mais antigos soldadinhos de chumbo conhecidos.
2 - Cálice e duas patenas (taça para o vinho e prato para a hóstia consagrada durante a missa). século 15. Chumbo e estanho. Paris, Île de la Cité
Estas peças parecem também corresponder a miniaturas de objetos litúrgicos para a cerimônia eucarística: um cálice e uma patena com o monograma de Cristo, outra com o símbolo do peixe. Atestados no período moderno, os jogos de role-playing religiosos eram, sem dúvida, praticados já na Idade Média.
3 - Jantar - Talheres (bebidas: jarras, jarras, copos; alimentos: travessas, pratos, colheres, facas); utensílios de cozinha (panelas, frigideiras, grelhador, espeto rotativo, máquina de waffle, podador e pá); móveis (castiçal, mesas e braseiro). Chumbo e estanho do final do século XIV ao início do século XVI. Paris, Île de la Cité
Esses brinquedos foram descobertos por Arthur Forgeais no século XIX, no Sena, com a grande maioria das balas de chumbo preservadas no museu e Cluny.
Mulher como representação da santidade e representação do ideal de beleza
A mulher era vista como mais piedosa que os homens piedade e deveriam ser as guardiãs da piedade dentro das famílias.
As representações das mulheres santas demonstram padrões da moda no final da Idade Média e início do Renascimento. Escolhi algumas que me chamaram a atenção:
Um contraponto mais carnal a mãe que amamenta ou mater dolorosa. Sentada num banco, a Virgem amamenta o Menino que agarra o véu da mãe com um gesto rápido enquanto ela estica o pano que o envolve.
Esta evocação muito sensível da infância de Jesus, assim como o estilo da obra, são característicos da escultura gótica do final do século XIV.
Busto relicário de Santa Úrsula, Cologne, 1349. Madeira, prateamento e douramento modernos
Santa Mabille, Siena de meados do século XIV. Identificada por uma inscrição em seu peito, é uma das onze mil virgens mártires que seguiram Santa Úrsula. Ela é representada aqui em busto adornado com pedras preciosas. A vestida é dourada e suas feições sõa de uma mulher e séria. Seu rosto é destacado por tranças que emolduram sua testa alta.
O estilo, especialmente o tratamento do rosto com seu nariz reto, sobrancelhas retas e cabelos formando um oval claro, corresponde às obras de Siena de meados do século XIV.
Santa Bárbara: Mechelen (Brabant, atual Bélgica), por volta de 1515-1520 Madeira policromada.
Esta estatueta representa uma jovem Santa Bárbara, charmosa, com expressão ingênua, no entanto, a elegância complexa se adapta ao gosto do século XVI.
Santa Bárbara, Normandia, século XVI Calcário, vestígios de policromia Pensa-se que seja da região da Mancha (França). O penteado e os detalhes da vestimenta são encantadores.
Que tal colorir a Dama e o Unicornio?
Referências
- DUBY, Georges. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
- Musée de Cluny, Musée national du Moyen Âge